Page 100 - Da Terra
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MÃE DO TRIGO JOIO
Naquele tempo andávamos nus e sem vergonha, as mulheres largavam Os grandes temas já repousavam em Homero. Tudo por lá jazia como germe abrindo-se ao ar das manhãs. Nada de novo foi
com doçura o mênstruo nas terras estéreis. Gotas do seu próprio leite inventado, os que vieram apenas aceleraram processos renovando instrumentos e enterrando palavras an gas. Em todas
fer lizavam os solos fazendo irromper o ouro como um astro subterrâneo, as épocas encontramos o intelectual enfadado com o presente e desconfiado do futuro, aquele que sem o declarar é como
lava desabrochando onde as mãos se aqueciam encantadas. Eu nha uma se dissesse ou pensasse: a juventude está perdida. Nada o entusiasma, nada a não ser a sua própria decadência o mo va.
idade anterior à dos homens e corria pelos campos a espantar corvos e Acontece a quem envelhece mal, convencido de que o mundo não lhe faz jus ça. Vistos de Homero somos todos
pardais. Raspava pedra contra pedra até os calhaus se desfazerem em medíocres, mas que terão dito aqueles que caminharam a par de ilíadas ombreando com odisseias? Terão exis do?
migalhas. Do som saiu a música e da música veio o fogo. Por isso cantamos
Joio é trigo degenerado, medra em certos trigais e é nocivo ao crescimento. A terra tem influência nisso. O trigo
sempre que queremos espantar o mal, por isso ardemos sempre que
transforma-se em joio mas o joio não se transforma em trigo, assim como o vinho se transforma em vinagre mas o
queremos reinventar o corpo. Não nasci como as outras. Nasci de uma
vinagre não se transforma em vinho. É preciso separar por crivos próprios o trigo do joio, é preciso joeirar os campos da
mãe cadáver, morta de morrer por me parir. Dizem-me que ainda fui
literatura tal como se esquadrinham as terras. E deixar uma meda de palha para cama e alimento das bestas, sempre
amamentada por ela. No leito da morte bebi o leite da vida, depois fui para
úteis ao fazer porque sem o espicho das bestas nem palhada nem farinha. Só o trigo limpo serve ao pão, é preciso
minha avó a fim de ser desmamada. Bebi o leite da vida no leito da morte.
limpá-lo de impurezas. Uma vida de trabalho.
Os filhos dos filhos dos meus filhos já não passam as noites quentes de
Verão a descamisar milho na eira. Foi sustento que acabou quando era Em jeito de conclusão prévia, diremos que não podem as ondas prender as pernas com as correntes das marés. O mar não
hora de acabar. Também já não há índios, ex nguiram-se embrulhados na prende, arrasta o náufrago para o fundo silencioso das águas. Da profundidade, apenas um rumor vem à super cie: célula,
pele dos bisontes. Mas que importa isso? Eu nunca fui à América. osso, pó. E alguém encostado à parede saturada do estômago perderá horas de vida a queixar-se da baleia que o cuspiu
como a um caroço indigesto. O génio tem vida própria, raramente não andamos desencontrados.
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